GNR condenado pela morte do rapaz cigano acredita que seria punido qualquer que fosse o desfecho da perseguição
Não é o primeiro polícia a matar em serviço, mas a história de Hugo Ernano tornou-se mediática. Durante uma perseguição, o militar da GNR disparou sobre um rapaz de etnia cigana que o pai, foragido da cadeia, levou para um assalto. O caso deu-se em 2008 e, em Outubro do ano passado, o Tribunal de Loures condenou-o a nove anos de prisão efectiva e ao pagamento de uma indemnização de 80 mil euros aos pais. A Relação de Lisboa mudou agora a sentença: quatro anos de pena suspensa e 45 mil euros de indemnização. Na primeira grande entrevista a um jornal, Hugo Ernano recorda o que aconteceu na perseguição e diz que não se sente culpado: conta que só puxou da arma para garantir a segurança de um grupo de crianças que estava num largo para onde a carrinha em fuga se dirigia a grande velocidade. Apesar da certeza, não nega que passou, e ainda passa, maus bocados. "Não sei o que é dormir desde Outubro."
Sente-se culpado pelo que aconteceu?
Não. O que me faz continuar a viver todos os dias é sentir que não tive culpa daquilo. Todo os dias penso no que aconteceu, revejo a situação e sei que não podia ter feito de outra maneira. Fiz tudo o que estava previsto na lei. Tomei todas as precauções de segurança. Na vertente policial, a nossa acção adequa-se ao comportamento da pessoa que está do outro lado. Se fiz o que fiz foi porque alguém me obrigou a fazer assim.
Mesmo tendo essa certeza, não dá por si a pensar no rapaz?
Penso nele todos os dias. Mas sei que não tive culpa e essa certeza é o que me mantém equilibrado.
Quando recebeu a chamada via rádio tinha noção de que poderia gerar-se uma situação tão grave?
Não. Estava com dois colegas a fazer patrulhamento, tínhamos acabado de passar pelo largo da igreja onde estava o grupo das crianças e disseram-nos pelo rádio que estava a haver um assalto naquela quinta. Já era a terceira vez.
Sabia que era a terceira vez?
Aquilo aconteceu numa segunda-feira. Tinha estado de férias e, quando cheguei ao serviço, perguntei aos meus colegas o que tinha havido enquanto estive fora. Contaram-me que no sábado e na quinta-feira a vacaria tinha sido assaltada. Quando ouvi a informação no rádio pensei logo que deviam ser as mesmas pessoas. O meu mal foi estar a 30 segundos do local.
Acha que teve azar?
Não posso falar em azar. A minha função é garantir a segurança das pessoas e dos seus bens. Qualquer polícia fica sempre contente quando está perto de uma ocorrência. Agora... Se calhar teria sido melhor se estivesse no posto naquele momento? Se estivesse no posto não tinha chegado a tempo e não os tinha apanhado... Estava no sítio errado à hora errada? Ou no sítio certo à hora certa? Quem é roubado não tem o direito a ter as suas coisas acauteladas?
Quando chegou ao local o que viu?
Fomos rápido para os apanharmos e não ligámos as sirenes para não darem por nós. Pus a nossa viatura com rota de fuga para eles, como mandam os procedimentos. Mas, quando nos viram, arrancaram e vieram para cima de mim com a carrinha. Ficou provado em tribunal que me tentaram atropelar.
Percebeu quem ia no carro?
Não conseguíamos ver ninguém porque os vidros estavam pintados. Só no final é que vimos quantos eram.
Durante a perseguição, quando é que decide pegar na arma?
Um polícia não pega na arma só por pegar. Há regras e etapas antes de se chegar aos meios letais. A nossa presença uniformizada não resultou. Também não acataram a ordem de paragem. Tentaram atropelar-me e fugiram. Durante a perseguição, dei ordem de paragem várias vezes. Até que numa curva à direita, antes da recta que ia dar ao largo da igreja, vimos que um deles tinha uma arma de fogo. Ao ver a arma e sabendo que no fim da recta estavam 60 ou 70 crianças...
Tinha de fazer parar a carrinha?
Senão podia acontecer algo mais trágico. A carrinha ia rápido de mais e se ele me tinha tentado atropelar, quem me garantia que parava para não magoar as crianças? Então disparei dois tiros de advertência, que é o patamar seguinte de actuação. A lei até diz que eu poderia, a seguir, atirar logo contra a carrinha, por estar em perigo a vida de terceiros. Mas nem isso fiz. Disparei para o pneu traseiro do lado esquerdo.
Porque continuou a disparar a seguir?
Porque ele não parou. Tudo isto que lhe estou a contar aconteceu num espaço de segundos. São situações rápidas. Não sabendo se tinha conseguido atingir no pneu esquerdo, e como ele não parou, apontei para o pneu direito. Mas, e isso ficou provado, o nosso carro deu um salto e o tiro saiu mais para cima. A balística mostra que os tiros foram todos descendentes, para baixo. O que só mostra que eu não tive intenção.
Na perseguição, achou que poderia estar perante que tipo de criminoso?
Ele conduziu sempre aos solavancos para que lhe batêssemos por trás e aos ziguezagues para não o ultrapassarmos. Percebi que era experiente. E perigoso, por ter tentado vir para cima de mim com a carrinha. Depois veio a confirmar-se que já tinha cadastro e que estava fugido da cadeia por crimes violentos de sequestro e roubo.
A carrinha parou, mas não foi por causa dos tiros?
Não. Ele parou porque quis. Talvez por o filho ter sido atingido. E parou mesmo à entrada do largo. As crianças estavam a 10, 15 metros de distância. Mais um bocadinho e tinha acontecido alguma coisa. Tirei-o do carro, ele ainda resistiu e imobilizei-o. Os meus colegas foram pelo outro lado, retirar os outros ocupantes. O rapaz saiu pelos próprios pés e disse que estava baleado, mas estava consciente. Não ouvi, porque estava do outro lado com o pai. Um colega veio ter comigo e disse-me: "Está ali um que está ferido".
Não lhe disse que era uma criança?
Nós não percebemos que era uma criança. O rapaz era mais alto do que nós. O meu colega ficou a fazer segurança ao pai e eu fui ver do rapaz. Tratei dele, coloquei-o na posição lateral, dei-lhe assistência, chamámos os bombeiros e ele seguiu para o Hospital de Santa Maria.
E a seguir, o que fez?
Isolei a área. Entretanto tinha chegado muita gente e tínhamos pedido reforços. Cortou-se o trânsito. Estava cheio de dores por causa da tentativa do atropelamento. O tempo começou a passar, o corpo ficou frio e deixei de sentir o braço esquerdo. A PJ chegou, passei o serviço, entreguei a arma e deixei o meu contacto para que me pusessem ao corrente da situação. Os meus colegas levaram-me para o hospital.
Qual foi o diagnóstico?
Uma lesão lombar, mais tarde soube que fiz duas hérnias discais. Agora tenho de ter muito cuidado. Tive de deixar de fazer desporto, que era uma coisa que gostava muito. Vou ao ginásio, mas no dia a seguir não me mexo.
Foi para o hospital militar?
Sim. E quando estava à espera dos exames comecei a ver tudo na televisão. Foi quando soube que o rapaz tinha morrido. Ninguém me telefonou a dizer. Estavam a mostrar imagens do local e depois passou em rodapé a dizer que tinha morrido uma criança. Fiquei admirado e pensei: uma criança? Achei aquilo estranho. Ele era da minha altura, um matulão.
E o que pensou nesse momento?
Sei lá o que pensei. Caiu-me tudo. Já estava mal, com dores. Foi horrível. Atingir alguém... não querendo atingir. Fiquei mal. Quis partir tudo. Chorei. Sempre me considerei um bom profissional e sempre tive e tenho grande cuidado em tudo o que faço. Sou até demasiado picuinhas e... Naquele momento tudo me correu mal... Entende? Como é que era possível? Nada daquilo era o que eu queria. Fiz aquilo para ninguém se magoar e afinal houve alguém que se magoou.
Estava sozinho?
Só queria estar sozinho. Tinha de pensar nas coisas. Não é sinal de fraqueza, mas não gosto de mostrar que estou mal.
Ficou no hospital muito tempo?
Depois de ter sido tratado pedi para ficar sozinho numa sala. Mais tarde fui para o posto para fazer a escrita. Fui para casa, com o braço imobilizado, às duas da manhã, aquilo tinha sido às 17h21. Aquela semana fiquei em casa, fui ouvido pela PJ na quarta-feira e só voltei ao serviço na segunda-feira seguinte.
Tinha medo de ser acusado ou achava que ia correr bem para o seu lado?
Talvez me sentisse um bocado sozinho contra o mundo. Nunca tive medo de nada. Mas tive, sim, grandes receios em relação ao que podia acontecer à minha família. Houve ameaças.
A primeira ameaça chegou quando?
Na segunda-feira seguinte, quando regressei ao serviço. Telefonaram-me a dizer para ir rápido ao restaurante da minha irmã porque estavam a tentar pegar fogo àquilo. Fui a correr para lá com uns colegas e vimos duas carrinhas brancas a atirar cocktails molotov. Seguimo-los, mas não os conseguimos apanhar.
E ameaças directas?
Os vizinhos começaram a dizer-me que andavam pessoas no bairro a perguntar por mim. E também fui avisado por ciganos de bem que andavam a ver de mim. Tive de mudar de casa.
Porquê?
Se andavam a ver de mim, iam descobrir-me de certeza absoluta e se mudasse de casa ninguém me conheceria. De uma semana para a outra arranjei outra casa e mudei-me. Foi uma confusão. Ainda estou a pagar a casa antiga ao banco. Falhei prestações... Foi tudo muito complicado e ainda é.
Também trocou de carro?
Sim. Uma manhã fui dar com o carro completamente baleado.
Como é que se explica isto à família?
Não se explica. Na altura o meu casamento já não estava bem, nunca nos demos bem. E se já dormíamos em camas separadas, deixámos simplesmente de nos falar. Felizmente conheci a minha mulher. Foi a melhor coisa que me aconteceu. É o meu anjo da guarda.
Como é que se conheceram?
Em finais de 2009, numa loja, quando fui comprar umas calças (risos). Achei--a bonita, meti-me com ela. Não é todos os dias que se encontra uma ruiva bonita! Mas ela não me ligou nenhuma, nem achou piada nenhuma a que me estivesse a meter com ela. Fui-me embora e pensei: caramba, a miúda não me ligou! Fomos conversando depois disso.
Quando começaram a sair contou-lhe que estava metido em problemas?
Uns tempos depois abri o jogo. Fomo- -nos conhecendo melhor aos poucos. Achei que isso podia afastá-la. E ela própria, há pouco tempo, confidenciou-me que nunca pensou que isto pudesse tomar estas proporções. É que também é o futuro dela que está em causa e não posso ser egoísta e pensar só em mim. Não lhe quero estragar a vida. Quando foi a decisão do tribunal, em Outubro, tínhamos ficado de comemorar os nossos dois anos de casados. Tínhamos juntado um dinheirinho para fazer uma viagem e não pudemos. O dinheiro foi para o recurso. E a vida dela, como fica? Ela deixou totalmente a vida dela para se dedicar à minha. E, desde que a conheço, a minha vida mudou totalmente. Eu só via a profissão. Não socializava.
Só trabalhava?
Só trabalhava mesmo. Não tirava férias. Só comecei a gozar férias com ela. Só queria trabalhar e prender pessoas. Não queria folgar porque tinha medo de que acontecesse alguma coisa e eu não estivesse lá. Nos primeiros anos na GNR eu até de férias trabalhava. Fiz muitas detenções à civil, no meu próprio carro.
Mas já tinha tido repreensões e problemas no trabalho.
É normal. A maioria dos polícias têm problemas. Faz parte. Isto não é brincadeira. É a polícia. Há queixas contra mim? Claro que há. Ninguém gosta de ser apanhado. Mas numa situação de violência doméstica ou de ordem pública como é que se responde a uma agressão? Defendendo-nos. Ninguém sai imaculado de parte a parte. Nunca deixo nada por fazer. Nada.
Por ser viciado no trabalho, sente que lhe foi mais difícil lidar com o que aconteceu?
Foi difícil. Não estou habituado a ver-me no banco dos réus, nem nunca imaginei vir a estar. Normalmente estou do outro lado. E o meu rol de detenções é longo. Em 14 anos já prendi mais de mil pessoas. Estou só a falar de crimes acima de três anos. Houve dias em que numa patrulha de oito horas conseguia prender cinco pessoas. Porque sempre tive azar... As coisas vinham ter comigo. Era guarda há uns meses e estava a passar na minha rua quando vejo um indivíduo a agarrar uma senhora e a pôr-lhe uma faca ao pescoço. Era uma situação de violência doméstica e ela já estava a sangrar. Tirei a faca ao homem e ele foi detido. Tive muitas situações assim, em que as coisas vinham ter comigo.
Os seus pais não se davam bem?
Não. O meu pai bebia muito. A minha vida nunca foi fácil. Agora tento dar tudo o que não tive aos meus filhos. E sobretudo não lhes toco. O meu pai batia-me quando lhe dava na cabeça.
Tem mais irmãos?
Quatro irmãs. Sou o do meio. Mas nunca fui mimado. A responsabilidade veio para cima para mim muito cedo. Tive de sair da escola no 9.o ano.
Não era bom aluno?
Nessa altura já era. Tinha boas notas e até tinha uma espécie de bolsa de estudo por atingir metas. E era muito bom no desporto. No atletismo ganhei muitas provas.
Então saiu porquê?
O meu pai tirou-me.
Mas porquê?
Porque eu era homem e, como tal, tinha de trabalhar. E o meu pai nem precisava, tinha uma empresa de construção civil, algum dinheiro, lojas, empregados. Não precisava. Mas meteu aquilo na cabeça. Tinha 15 anos e fui trabalhar com ele.
E a sua mãe?
A minha mãe era aquela coisa à antiga... o meu pai decidia e ela não dizia nada. Hoje é diferente, o meu pai mudou.
Foi trabalhar com o seu pai em quê?
Carregava coisas. Massa, tijolos.
Mas depois foi segurança.
Aos 18 anos tirei a carta e continuei com ele ainda uns tempos, mas depois aquilo atingiu um extremo. Tivemos uma grande discussão e ele bateu-me à frente dos empregados. Partiu-me uma costela com uma chave inglesa. Tinha juntado um dinheirinho e decidi ir à minha vida. Fui para a tropa mais cedo e depois para vigilante no Colombo até me chamarem para o curso da GNR.
Sempre quis entrar para a GNR?
Sim.
E porquê?
Quando era puto queria mudar o mundo. E ser polícia para não haver criminosos na rua. Hoje sei que é impossível.
O que aconteceu mudou-o enquanto profissional?
Sinceramente não.
Não pensará agora duas vezes antes de voltar a pegar na arma?
Muitos colegas dizem-me que o melhor é o que fica por fazer e para me deixar andar. Mas não consigo. Ninguém tem culpa dos erros de outras pessoas. Os cidadãos têm de estar e de se sentir seguros. Tenho de fazer aquilo que jurei fazer cumprir: a lei. Tenho 35 anos e quanto mais velho estou, mais provas tenho de que todo o trabalho que deixei para trás é bom. Então porque é que não hei-de fazer mais? O melhor que podemos ter na vida é pessoas a agradecer-nos: obrigado por teres apanhado o gajo que me roubou, obrigado por me teres salvo. Isto que vê aqui [mostra os braços e as pernas] foi uma facada, isto foi outra... Tenho costelas partidas, braços partidos, várias lesões no corpo, tudo em serviço. E nunca meti baixa.
Os seus pais acompanharam o caso?
O meu pai teve um problema de saúde grave há ano e meio, quase morreu. Reconciliámo-nos e agora damo-nos bem. Nunca quis saber de mim, mas agora liga-me três vezes ao dia. Ele mudou muito a seguir à doença. Muito mesmo. Mas há coisas que não se recuperam. Perdi a minha infância. Tudo o que consegui na vida foi sozinho. Os meus pais não queriam saber.
Porque é que acha que era assim?
Sempre disse que o meu pai teve um filho para ter um saco de boxe. Ele fazia boxe nos Alunos de Apolo. Quando era miúdo, muitas vezes fazia asneiras na escola só para chamar a atenção... Eram chamadas de atenção, hoje vejo isso. Partia vidros, andava à porrada. Mas o meu pai não queria saber. E a minha sorte foi ter um professor de Educação Física, o Pedro Santos, que acreditou em mim. Pegou em mim e mudou o puto rebelde. Foi a primeira pessoa que me mostrou que eu afinal era importante e podia ser útil para a sociedade. Não queria deixá-lo ficar mal e as minhas notas melhoraram. Deixei de ser o gajo que toda a gente temia e com quem ninguém falava... Eu era... Sempre fui muito treinado por causa da porrada que levava em casa. Ninguém me conseguia tocar na escola, nem os miúdos maiores.
Qual foi a pior fase do processo?
A primeira semana após a decisão do tribunal, em Outubro [silêncio]. Se não tivesse a minha mulher não sei o que tinha feito, se calhar já cá não estava. E o meu advogado também ajudou muito. É acima de tudo meu amigo. E ainda nem lhe paguei nada. Mas... A força interior que sempre tive, que me fazia acreditar que era capaz de tudo... Desapareceu. Nem conseguia tratar do meu filho, acredita? Estava tão mal... Estava como que a preparar-me para nunca mais o ver. Cheguei ao ponto de ter os meus amigos todos em casa para me apoiarem e ligar à minha mulher a dizer--lhe para ela vir rápido para casa porque eu não estava a aguentar, só queria que eles fossem embora. Sentia-me nervoso. Nessa tarde fui à casa de banho vomitar três vezes.
Falou com algum psicólogo?
Não. Para mim era sinal de fraqueza e pensei sempre que nenhum psicólogo seria capaz de compreender o que estava a sentir.
Porquê?
Não há nenhum psicólogo especializado na parte policial.
O que é que o perturbava concretamente?
Reflectia todos os dias no meu modo de trabalhar. No que fiz e se podia ter feito de outra maneira. E que psicólogo é que me poderia ajudar a esclarecer isso? Um psicólogo não sabe dessas coisas.
Começou por me dizer que, a seguir ao incidente, não duvidava de si. O que mudou em Outubro?
No início não tinha dúvidas. Mas depois foi diferente... As pessoas a quem eu levo os tipos que apanho na rua para que se faça justiça estavam agora a dizer-me que tinha procedido mal.
Mas houve uma morte. Percebe que tem de haver consequências?
Quem tem filhos sabe o que vou dizer: quando se tem um filho é-se responsável por ele e pelo que se faz na presença dele. Nunca fiz, nem farei, nada que ponha em perigo a integridade física ou a vida do meu filho. E, pondo-me no lugar daquele pai, vejo as coisas assim: tenho a polícia atrás de mim, os polícias mandaram dois tiros para o ar... Eu paro o carro! Porque tenho o meu filho comigo!
Pensa muito no que faria se estivesse no lugar do pai do rapaz?
Todos os dias. Faço este exercício todos os dias. Só assim me posso manter são e acreditar que não fui responsável. Primeiro porque o desfecho não foi o que quis. E depois porque não fui o maior responsável naquela situação: também estava nas mãos dele, enquanto pai.
As associações socioprofissionais dizem que é preciso mais formação de tiro na GNR. Concorda?
Não há formação para isto! Podíamos ter mais treino? Se calhar podíamos. Mas não há nenhum polícia no mundo que esteja treinado para uma situação que acontece do nada e que escala para uma coisa daquelas, em que quase se morre e quase se vê pessoas a morrer se não se agir. Ainda bem que não sabemos o que poderia ter acontecido se a carrinha não tivesse parado. Qual seria hoje o meu estado de espírito se alguma daquelas crianças tivesse morrido por não ter feito nada?
Se isso acontecesse, se a carrinha não tivesse parado, acha que seria responsabilizado na mesma?
Mesmo que não fosse responsabilizado, eu responsabilizar-me-ia. Porque não tinha feito tudo o que estava ao meu alcance para parar aquele carro. É um pau de dois bicos. Talvez fosse sempre punido, de uma forma ou de outra. Não sei. O acórdão do tribunal diz que deveria ter deixado a carrinha ir em frente para saber a conclusão e para saber o que tinha de ser feito. Mas eu não iria sobreviver psicologicamente se tivessem morrido duas ou três crianças.
Vai recorrer da decisão do Tribunal de Loures?
Sim. Para o Supremo e para o Constitucional.
Já deu entrada com os papéis?
Estamos a tratar de toda a papelada. E estamos a juntar dinheiro para isso. Reactivei a conta de solidariedade.
O que acha que vai acontecer?
Não sei. Isto nunca devia ter acontecido. Mas também penso que depois de o mundo todo me ter caído em cima, o que é que me pode cair mais?
Ainda tem o processo disciplinar da GNR pendente.
Sim, que só será decidido quando o processo judicial estiver resolvido. Vamos ver.
Com o passar do tempo acha que vai acabar por esquecer o que aconteceu?
Não. Isto deixa marcas que nunca nada na vida há-de apagar. Marcas na vida pessoal, psíquicas, profissionais. Isto deu cabo de mim a todos os níveis. Antes disto tudo acontecer, por exemplo, memorizava dezenas de matrículas de carros, agora não consigo. Não porque esteja desatento... Tenho muitas dores de cabeça... Mesmo. E eu sou forte. Mas isto desgastou-me. A mim e sobretudo à minha mulher. Deito-me todos os dias cansado e posso até adormecer rápido, mas acordo duas horas depois e não volto a pregar olho. Não sei o que é dormir desde Outubro. Isto pode até ter um fim e vai ter um fim, mas nunca nada voltará a ser igual. Tenho a certeza que nunca nada será igual.
Fonte : Jornal i